terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Loucura e genialidade: uma perspectiva social e filosófica



A partir de conceitos próprios da psiquiatria, levanto a hipótese, por analogia, de um fenômeno social que propicia e identifica a genialidade humana. A loucura, como patologia da mente, pode ser lida sob uma perspectiva social, como fenômeno de transgressão natural de regras, de liberdade. A loucura social, este é o termo que tratarei em linhas filosoficamente dinâmicas, com incursões lógicas e analíticas.

Quando pensamos em loucura e genialidade é fundamental que fiquem esclarecidas algumas questões referentes à natureza da mente e dos conceitos de consciência , subconsciência e inconsciência. Isso porque o grau de consciência das pessoas pode ser estabelecido pelo acúmulo de informações adquiridas ao longo da vida, podendo ser aumentado ou reduzido, influenciando o comportamento e favorecendo ou não o estado de loucura.

O subconsciente ou superego, termo introduzido na psicanálise por Lacan, é um campo intermediário entre a consciência e a inconsciência. É um "espaço" mental que, a despeito de não termos acesso direto, podemos percebê-lo sob forma de informações internalizadas. São sugestões e regras que gerem nossa consciência (nosso ego). É o poder de racionalizar as coisas, impedindo que nossos desejos egoístas se manifestem. É no subconsciente que age nosso intelecto, racionalizando tudo que aprendemos como certo e errado, direcionando nossas atitudes, influênciando nossa leitura do mundo.

Em contrapartida temos por inconsciência a ausência de vigília. É o repositório da natureza animalesca que fica suprimida pela subconsciência.

De forma residual, temos a consciência, o nosso ego. É toda manifestação da personalidade, pulsionada pelo inconsciente e filtrada pelo subconsciente. É o que demonstramos, como agimos, como nos realizamos.

O cerne da questão que se quer tratar está no conceito de subconsciência. Essa repressão que aprisiona a maior parte dos nossos sentimentos, tornando-os latentes e muitas vezes até esquecidos. O subconsciente  é uma construção externa. Essa válvula repressora é uma manifestação exógena adquirida pelo contado com as regras e com a moralidade estabelecida pela sociedade.

Assim, não é difícil chegar-se ao entendimento de que quanto maior for o contato com as regras sociais, maior será a repressão estabelecia pelo nosso superego. Logo, podemos dizer que as pessoas urbanizadas, que têm um número maior de interações sociais, estão mais suscetíveis a desenvolver barreiras mentais do que aquelas que vivem no campo e possuem um número mais reduzido de interações.

No mesmo sentido podemos depreender que aqueles que convivem em ambiente nobre, regido por regras sociais mais austeras (etiquetas), tender-se-ão a se auto estabelecerem algumas restrições que não existiriam se vivessem em um ambiente mais despojado.

O fato é que, quanto maior for a interação e o número de regras a que nos submetemos, maior será o mecanismo repressor que vamos desenvolver.

Assim,podemos observar que, ao internalizarmos às regras, estamos restringindo nossa própria identidade a um núcleo tão elementar que ficamos todos claramante uniformizados.

Isso pode ser facilmente depreendido se olharmos o ser humano sob uma ótica social. A sociedade humana quando vista de uma forma máxima e geral, pode ser considerada disforme . Porém, ao ajustarmos o foco, se centrarmos em núcleos dentro dessa sociedade humana, iremos identificar diversos meties de pessoas que se submetem a uma mesma regra e que por isso possuem uma forma muito parecida de comportamento. É o que chamamos de moralidade. Número de regras sociais que um determinado grupo internaliza, respeitando-as e exigindo o seu cumprimento.

Este mecanismo racional descreve a rotina interativa de indivíduos considerados mentalmente sãos. Diversa é a situação daqueles considerados insanos. A maior parte das patologias mentais age na parte consciente do indivíduo. É a dissociação das regras e o completo esfacelamento dos mecanismos de controle impostos por elas e da capacidade racional.

Porém, como restou explicado na introdução deste ensaio,não se quer tratar dos casos de doenças mentais as quais retiram o homem do seu estado racional e imaginativo. Remeto-me ao termo loucura como elemento saudável de liberdade. Não se trata de um conceito patológico, mas de uma referência humana - a loucura social.

Apesar de existirem regras que moldam as pessoas dos grupos, podemos observar que em raríssimos casos, surgem indivíduos que não se deixam moldar. Embora não sejam mentalmente enfermos, esses homens são considerados loucos, pois a postura com que se apresentam na sociedade muitas vezes não se coaduna com as regras impostas.

Dessa forma, estigmatizados, vivem de forma anti-social e até imoral, mas não se permitem cegar os olhos multifocais adquiridos pela liberdade em nome do convencionalismo.

Assim, posso dizer que aqueles que são considerados loucos, não estão inteiramente alheios á moralidade e ás regras sociais. Mas, a despeito de reconhecê-las, não se deixam escravizar por elas. Eles não se submetem ao convencionalismo e vivem em uma realidade própria e indevassável. Os conceitos que desenvolvem e a leitura que fazem da matéria que os circulam são completamente originais, visto que não se prendem às regras já convencionadas.

Também é assim com as situações vividas. Por mais que se verifique aos olhos dos “sanos” as mais absurdas “loucuras”, na verdade apenas se trata da interação do homem com sua própria mente. A criação humana sem limites. A realidade contada pelo próprio ser e a partir do próprio ser.

Por que viver sob perspectivas prontas se é possível conceber a sua própria perspectiva do mundo? Por que se submeter àquilo que não faz sentido, que te aprisiona e que te tira a individualidade, transformando a todos em cópias fieis uns dos outros? Para que a insensata necessidade de se ser compreendido, quando ainda não compreendemos a própria natureza?

O que se pretende demonstrar é que o convencionalismo e a moralidade moldam os indivíduos. Porém aqueles que não se submetem à imposição das regras, a pesar de serem considerados “loucos”, terão sua individualidade preservada e conseguirão enxergar o mundo de forma peculiar e original, já que sua perspectiva individual não foi corrompida.

É dessa diferença raramente encontrada entre os homens que surgem os gênios. Embora em muitos casos a genética os favoreçam, o que os tornam geniais na verdade é a força de não se deixarem sucumbir ao convencionalismo. É o poder de se manter individualizado e não ter medo de expressar suas concepções livres, sem perspectivismos ou moralidade. É a consciência e a inconsciência juntas expressas em uma realidade ainda não imaginada e por isso tida por irreal, confusa e abstrata.

Os gênios (loucos) são pessoas que conseguiram ser livres, mas que pagaram o preço do estigma da loucura, do escárnio e do preconceito. Assim, somente têm a sua genialidade reconhecida após anos de sua morte, com a evolução da sociedade e de sua capacidade de compreendê-los.

Não esqueçamos do gênio Wolfgang Amadeus Mozart que foi tido como um verdadeiro excêntrico - um louco. Apesar de viver em um ambiente nobre e cheio de regras, Mozart não tinha pudor em caminhar semi-nu pelos corredores dos casarões em que tocava e de correr e gargalhar pela rua, sentindo cada gota de chuva tocando seu rosto e ali imaginado e concebendo o que seria mais uma de suas geniais obras.

Dito tudo isto, não espero que tornemos loucos e gênios, mas que aumentemos nossas perspectivas e não nos tornemos escravos das palavras e das idéias que nos são apresentadas e que vão de encontro com a nossa própria natureza. Que aceitemos os nossos sentimentos e concretizemos nossas vontades inofensivas. Que não abaixemos a cabeça para o preconceito e a intolerância que aprisionam o homem a um único conceito atribuído a alguém. Que não tenhamos medo de mostrar as nossas incoerências, pois é do caos que se extrai a ordem, assim como é das palavras perdidas que se concebe as mais fabulosas teorias filosóficas.

Liberdade: uma perspectiva intrínseca


A natureza humana alberga dois bens essenciais para cada um de nós - vida e liberdade. A vida é o bem mais importante do homem, pois sem ela nenhum outro teria relevância. É na verdade um pressuposto para a existência dos outros. Já a segunda pode ser um pressuposto para se viver de forma digna e saudável. Nada faz sentido na vida se não houver liberdade. Quando nela falamos, não podemos restringir a grandeza de seu significado ao campo material, pois não se quer tratar apenas do direito de locomoção de ir e vir, mas do bem em toda sua plenitude: mental e corporal. A liberdade mental ou de consciência é a maior, senão a única forma de se desenvolver o bem estar e a felicidade. Assim, fica claro a importância da identificação das causas ou fatores responsáveis pela ameaça desse bem essencial da vida humana.

O primeiro deles, talvez o mais arrebatador e de maior dificuldade de superação, é o vício. É muito óbvio que qualquer tipo de vício é capaz de cercear a liberdade de uma pessoa. A compulsão aprisiona o indivíduo deixando-o refém de uma única necessidade e privando-o de tudo mais que a vida lhe poderia oferecer. Trata-se de uma complexa causa de restrição de liberdade porque há uma conjunção física e psíquica.

O segundo fator a ser identificado é o medo. É inquestionável que este em algumas formas é capaz de aprisionar uma pessoa. É lógico que se está falando do medo patológico e não dos receios e limites naturais que são sentidos por todos. O medo ou temor exagerado por qualquer coisa nos imobiliza, tornando-nos inócuos às adversidades. O medo de arriscar nos furta as possibilidades e o medo concreto (de coisas ou pessoas) nos paralisa. De qualquer forma o medo nos tira a liberdade de consciência, reduzindo significativamente o nosso campo de vivência.

Não obstante tudo isso, existe uma característica humana capaz de nos aprisionar perpetuamente e de forma silenciosa e extremamente eficaz – a vaidade. Embora seja reconhecida como um vício, a vaidade deve ser questionada com maior altivez, já que o seu processo de aprisionamento se dá de forma imperceptível.

O indivíduo vaidoso vira refém do conceito que outros estabelecem a seu respeito. A vaidade o impõe limites e cerceia a felicidade, caso essa seja capaz de “ manchar” a reputação. Em muitos casos aliados a ela vêm a mentira como forma de manter a boa fama ou de dissimular aquela que não a é. A frustração também é outro sentimento experimentado.

Essa presunção nada mais é que o enchimento do ego com o próprio ego. O indivíduo presunçoso acredita piamente que é aquilo que pensam dele, mesmo que de fato não o seja. Por isso diz-se que está cheio de si. Em verdade está cheio de nada, de mentiras, está vazio. O orgulho constrói um individuo sem sentido próprio, uma vacuidade de vida e de verdades. Suas atitudes passam a ser guiadas pelo ego, desprendendo-se da consciência e do bom senso. Há uma deturpação dos valores que fortalece o conceito próprio em detrimento da verdadeira necessidade que lhe é sugerida.

Por fim, existem muitas causas que podem influenciar a nossa perda de liberdade. Talvez a vaidade seja a mais difícil de ser eliminada, pois ela é a união das outras. É um vício, pois há uma compulsão em se estabelecer uma imagem, mas também é um medo, já que o vaidoso não consegue mostrar suas fragilidades e fraquezas. Desvencilhar-se dos conceitos e preconceitos é, sem dúvidas, a melhor forma de se conquistar a felicidade e de se viver de forma leve e plena.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

"Eu sou": assim entitulou-se Deus


“Ocultando-se de Faraó, após haver matado um egípcio que torturava um hebreu até a morte, na Tenda de Jetro, me Mídia, Moisés teve a visão de uma sarça ardente que flamejava, iluminava, mas não emitia calor. Curioso, foi conferir de perto, pois sabia que era justamente no monte horebe que o Senhor fazia-se mais proximamente presente aos crentes. O Senhor ordenou a Moisés que tirasse as sandálias dos pés, pois ali era solo sagrado. Moisés perguntou respeitosamente ao Senhor se não estava ouvindo o clamor de seus filhos sofrendo a escravidão egípcia. Replicou-lhe o Senhor que o estava e que, por isso mesmo, havia escolhido Moisés para libertá-los do cativeiro e importante epopéia épica da antiguidade clássica. Tímido, Moisés relutou o quanto pode e ainda solicitou uma indicação direta: ‘minha gente pode perguntar o vosso nome. Como vos chamais?’ Disse-lhe Deus: ‘Eu sou. ‘Dirás aos Filhos de Israel que ‘Eu Sou’ o está enviando para libertá-los’”.
(Êxodo3,versículo 1 a 22)

Nesta passagem descrita em Êxodo, Deus identifica-se como “Eu sou”. A questão a ser levantada é relativa a escolha desta expressão para denominar-se. Reside nesta idéia, uma complexidade simbólica suscitada por sua não menos complexa realidade. A negação de nomes definitivos e limitados, propicia uma interpretação ampla, contemplando as possibilidades mais dignas da magnitude de sua natureza divina. Fica implícito, pela vacuidade do nome, todas as possibilidades interpretativas.

O que se pode depreender com essa passagem bíblica, é que, sendo Deus onipotente, onipresente e engendrador de todas as coisas, impossível se faz qualquer tentativa de conceituá-lo ou denominá-lo com nosso limitado código linguístico. Deus simplesmente é a natureza de todas as coisas. Uma fonte inesgotável de todas as possibilidades de existência. É a própria natureza da expressão “ser”, pois cumula, em sua sublime forma de existir, toda a potencialidade cíclica daquilo que propiciou. Um ser tão absoluto não pode ser mensurado ou limitado pelos conceitos de sua criação.

A escolha de um verbo sem transitividade, encerrando o “nome frase” em si mesmo, denota auto-suficiência, retirando-se, ele, da normalidade cíclica e transitiva de tudo aquilo que é iniciado por processo criativo. A incursão semântica do vocábulo, é uma alegoria da própria realidade que não se identifica ou se define por perspectivas. Uma realidade somente conhecida pela experimentação direta e absoluta.

Esse ensinamento sutil estabelecido no livro de Êxodo, reconhece a importância do poder iconoclasta em nossas vidas. Pois somente assim, desvencilhados dos limites que os conceitos nos impõem, podemos afirmar, categoricamente, que a experiência é a melhor, quiçá a única, forma de se conhecer plenamente a natureza de uma determinada realidade.